Se há frases que, mais injustamente, firam a sensibilidade e a reputação de uma comunidade honesta e hospitaleira, a dos «amigos de Peniche» - no seu vulgar sentido pejorativo de amigos desleais, amigos de quem é bom fugir - é uma delas. E, contudo, ainda há quem, ingénua ou maldosamente, teime em não reconhecer o inconveniente dessa injustiça, afrontando a nunca desmentida hospitalidade dos penichenses, quer através de impensados comentários de imprensa, ou de simples títulos de caixa alta, a encabeçar atrevidamente, notícias de ações de gente desleal, quer até no desenvolvimento temático de peças de teatro ou películas cinematográficas.
Imagem: Raul Valdez
|
Tendo D. Henrique morrido sem deixar descendência, surgiram naturalmente, como pretendentes ao trono de Portugal, três netos de D. Manuel: Filipe II, rei de Espanha, D. Catarina de Bragança e D. António, Prior de Crato. Era ao primeiro aquele a quem a força dava mais direito, demais coadjuvado pela perfídia que, ao tempo, grassava na corte portuguesa; e um exército espanhol, comandado pelo duque de Alba, invadiu o Alentejo, tendo Filipe sido proclamado rei de Portugal.
Não o reconheceu, todavia, D. António que, à força de mil e uma habilidades diplomáticas, conseguiu que Isabel Tudor, rainha de Inglaterra, pusesse à sua disposição um exército de cerca de 12.000 homens para com ele, reivindicar os seus direitos; e, a 22 de Maio de 1589, os penichenses viram desembarcar na sua praia do sul parte dos soldados desse exército, comandados pelo general John Norris.
Depois de uma leve escaramuça com a guarnição da fortaleza - a que não faltaria, sem dúvida a indiferença dos poucos portugueses às ordens do oficial castelhano D. Pedro de Gusmão e que suporiam, talvez, que com a chegada dos bretões, seria possível a expulsão do invasor filipino -, a praça foi tomada e o exército inglês caminhou sobre a capital, ao mesmo tempo que sob o comando do almirante Francis Drake, a esquadra que o desembarcara em Peniche rumava a caminho de Cascais.
Entretanto, entre o receio de uns e a alegria de outros, chegava a Lisboa a nova do desembarque de D. António, passando, entre os seus partidários, a segredar-se, num anseio de esperança: «Vêm aí os nossos amigos... Vêm aí os nossos amigos que desembarcaram em Peniche...»
Mas o exército invasor e sem que o Prior do Crato tivesse a força suficiente para o evitar avançava na maior das indisciplinas, devastando e roubando as terras por onde passava - Atouguia, Lourinhã, Torres Vedras, Loures... - até que, tenho chegado às portas da Cidade acampou nos altos do Monte Olivete onde, pouco depois, os canhões do Castelo de S. Jorge, por ordem de D. Gabriel Nino, começaram a despejar metralha. Grande foi a surpresa de John Norris em face deste bombardeamento, pois D. António, para conseguir o indispensável auxílio do exército inglês, teria provavelmente garantido não haver necessidade de combater, visto que seria festivamente recebido em Portugal.
O acampamento foi mudado para a Boa Vista e Bairro Alto, de onde, após uma breve escaramuça com os castelhanos, retirou de novo, desta vez para a Esperança.
Dentro das muralhas e durante todas estas manobras, a ansiedade patriótica dos «antonistas» continuava, segredando a ocultas: «Será hoje que chegam os nossos amigos? Virão hoje os nossos amigos de Peniche?...»
D. António bem deve ter insistido e procurado dar novas garantias, mas aquele exército composto de mercenários não poderia sentir o patriotismo e a dor do infeliz e desorientado pretendente; e assim, dias depois e em face do desespero do Prior do Crato, refugiava-se ingloriamente em Cascais, na mesma esquadra que o trouxera de Inglaterra e desembarcara em Peniche. - «Porque não entram os nossos amigos? Porque nos abandonam os nossos amigos de Peniche?...»
E foram baldadas todas as ingénuas esperanças dos partidários de D. António, pois o auxílio que a este fora oferecido teria, por certo, menos o interesse de participar generosamente na reconquista da independência de Portugal que humilhar o orgulho e poderio de Espanha através de um golpe de surpresa, aliás coadjuvado pela suposta fácil sublevação do povo português cansado de extorsões e ignomínias.
Por muito tempo ficou aberta no coração dos «antonistas», como ferida dolorosa, a desilusão dos amigos desembarcados em Peniche, daqueles amigos que esperavam receber como libertadores e que afinal os tinham abandonado. Mas os homens desembarcados em Peniche e que traíram a esperança dos bons portugueses de então, partiram como vieram, não ficaram em Portugal...
À distância - que é tempo de defender uma sensibilidade e uma honradez afrontada sem razão - consola verificar que não foi penichense algum a trair o compromisso sagrado de uma amizade ou a desiludir a esperança de um infeliz. E ainda hoje, a única resposta que os penichenses encontram para a afronta impensada e injusta daqueles que os julgam amigos infiéis, amigos em que não há que acreditar - afronta que atinge o cúmulo de se olhar com insólita desconfiança para uma pessoa somente por saber-se ser ela de Peniche! -, “é continuar a oferecer sempre uma carinhosa hospitalidade; mas também, com a firmeza dos simples, é responder como um ilustre médico penichense o fez a um seu colega quando, uma vez, lhe perguntou - certamente com uma pontinha de ironia - o que eram os «amigos de Peniche» - Olhe, meu caro; «amigos de Peniche», são uma cáfila de patifes que eu tenho encontrado por toda a parte, menos lá!...”
E, ressalvada a generalidade, compreende-se nitidamente, e justifica-se o sentido imperioso da resposta: era um filho de Peniche a repudiar, com amargura, a injustiça de uma afronta de três séculos!
In Peniche na História e na Lenda, CALADO, Mariano (1991), Peniche, Edição do Autor.